O sol invadia o apartamento e o despertador não precisou cumprir o seu dever: o velho senhor já estava vestido e terminava de colocar os tênis quando o alarme programado para as 8h disparou. Ele se levantou da cama, desativou o despertador e logo foi para a cozinha tomar o seu café da manhã. Ainda estava um pouco zonzo por conta da noite mal dormida. Boa parte da culpa estava na vizinha do andar de cima, que parece ter dado uma festa na noite anterior.
O velho homem se debruçou na janela e observou a cidade. Ele havia se mudado de Belo Horizonte para o Rio cinco anos antes, embora a vida inteira tivesse feito a ponte aérea de uma cidade para a outra. Ele gostava do clima da cidade, especialmente naquele horário. O calor era agradável e ele resolveu que já podia sair de casa.
Dentro do elevador havia um jovem que era novo no prédio ou então estava na festa barulhenta da vizinha. O senhor o cumprimentou com a cabeça e murmurou um “bom dia” (que ficou sem resposta) enquanto imaginava quem seria o rapaz das roupas amassadas e olheiras imensas de quem passou a noite em claro. Quando o elevador chegou no térreo, o jovem se apressou em sair e quase esbarrou no senhor, que ainda estava distraído com seus próprios pensamentos e foi saindo tranquilamente do seu apartamento em direção à praia.
Parou em uma farmácia no meio do caminho. Encontrou com um velho conhecido e trocaram breves palavras, daquelas que as pessoas dizem quando não há nada a ser falado. Reclamaram da atitude de uma funcionária do estabelecimento, que nunca tinha paciência de atender os idosos e costumava tratar todos muito mal. “Pior que ela é andar de ônibus e as pessoas mais novas ficarem sentadas no meu lugar”, o outro velhinho resmungava. Mas o velho senhor não estava mais prestando atenção: ele havia encontrado uma carinhosa e atenciosa funcionária e foi até ela, logo depois de pedir licença para o conhecido.
A jovem parecia triste e ele logo tratou de fazer algum comentário espirituoso sobre os preços dos medicamentos e que acabaria morrendo se os valores não parassem de aumentar. Ela sorriu e mostrou seus belos dentes, enquanto buscava os remédios do velho. Ele agradeceu, desejou um bom dia e caminhou para a fila do caixa, que não havia atendimento especial para idosos.
O senhor esperou no ponto de ônibus por muito tempo, mas desanimou e pegou um táxi direto para Copacabana. O motorista era grosseiro e não quis saber de muita conversa. “não estou preocupado com o que os jovens fazem com os idosos dentro dos ônibus. Eu só ando de carro.” Ainda tentou pegar um caminho diferente para enrolar o senhor, que usando a astúcia mineira indagou que queria ir por outra rua. O motorista rosnou, mas continuou o caminho e logo chegaram na famosa calçada imortalizada na canção de Tom Jobim.
Ao descer do carro e passar por entre os transeuntes que faziam suas caminhadas diárias, o senhor respirou fundo e olhou emocionado para o mar. Lembranças. Lembranças. E lembranças. Começou a caminhar lentamente e sempre tinha que tomar cuidado para desviar de uma ou outra mulher de corpo escultural e que parecia achar que a calçada era a sua passarela pessoal e que todos deveriam sair de seu caminho. Ele se perguntou se aquela não era a Luana Piovani. Andava. Continuava o seu caminho.
O mar estava cheio. Ele se deliciava com uma água de coco bem gelada e forçava a vista para enxergar os detalhes dos biquínis das garotas, que provavelmente tinham idade para serem suas netas. “Na minha época, as moças usavam grandes maiôs e todos os rapazes tinham que conhecer o pai e a mãe de qualquer uma antes de pedir para ir ao cinema ou sorveteria.” O jovem vendedor de água de coco riu e disse que hoje em dia elas costumavam nadar até peladas e que “Nem fodendo que quero conhecer o pai e a mãe delas.” O senhor desviou seu olhar da beirada do mar e sorriu para o garoto. “São tempos diferentes.”
Ele continuou a sua caminhada até que um garotinho de aproximadamente seis anos veio correndo em sua direção. “Vovô, vovô, eu nadei lá no fundo e não afoguei.” Um homem sem camisa sorria e se aproximou lentamente com uma bela garotinha no colo. “Eles são terríveis no mar. Meu Deus. Nós também eramos assim? Imagino o trabalho que você tinha quando nos trazia para a praia.” O velho riu, levou a mão até a altura dos olhos para se proteger do sol e novamente olhou para o mar. Lembranças. Durante aqueles segundos ele lembrou de quando era mais novo que o seu filho e os tempos eram outros e ele finalmente chegou à conclusão de quem era aquele garoto no elevador e sua conexão com a bagunça na casa da vizinha. Ele percebeu porque olhava pela janela e observava a movimentação na rua. Ele entendeu os motivos que o faziam querer ser atendido sempre pela mesma funcionária. O mar transformava seus sonhos em lembranças e suas memórias eram levadas pelas ondas. Respirou fundo, carregou o neto e começou a caminhar ao lado do filho e da neta, perguntou: “Quem quer ouvir uma história de quando eu era mais novo?”